segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Recensão enviada pelo Pe. Ney Brasil Pereira

VIEIRA, Paulo Leonardo Medeiros, “Deus no banco dos réus. Uma resposta da Ciência ao Ateísmo militante”, Florianópolis, Ed. LEDIX, 2010, 21x14,5cm, 230 p.

Ney Brasil Pereira*

Quatro anos após lançar, pela mesma Editora, “A Fé de Pedro e a Ciência de Tomé”, volta o autor, como lemos na orelha direita da capa do novo livro, “ao centro desse borbulhante cenário de aparente contradição entre a Fé e a Ciência, a Religião e a Academia. Mais uma vez acerta na preciosa seleção de textos, experimentos e experiências, e dentre os melhores personagens da ciência apresenta ao leitor ótimas testemunhas em favor da tolerância e da não negligência da Possibilidade, enfim, a essência da própria procura de respostas pela Ciência.”

O livro, que conta com a apresentação de Dom Murilo S.R. Krieger, Arcebispo de Florianópolis, e com nove páginas de Bibliografia (pp. 221-229), desenvolve-se didaticamente em 18 capítulos, cujo conteúdo coloca o leitor em dia com o momentoso assunto. Lembro-me da forte impressão que, sobre idêntico tema, causou-me a leitura do livro “O princípio de todas as coisas”, do teólogo suíço Hans Küng. Esse livro, lançado no Brasil pela editora Vozes, em 2007, e citado várias vezes por Vieira, tem como subtítulo: “Ciências naturais e religião”. Küng trata o tema de maneira mais irênica, menos combativa, não focalizando frontalmente os ataques do “ateísmo militante”. De uns anos para cá, porém, esses ataques à religião e à fé em Deus têm tomado tal vulto, longe de diminuir a intensidade, que a postura apologética de Vieira se justifica plenamente. A propósito, é sugestiva, na abertura do livro, a citação do papa Paulo VI, na sua alocução a teólogos reunidos em Roma em 1966, poucos meses após a conclusão do Concílio Vaticano II: “Estamos inteiramente persuadidos de que bispos e padres não podem mais desempenhar sua missão de iluminação e salvação do mundo moderno, se não forem capazes de apresentar, defender e explicitar as verdades da fé divina por meio de conceitos e termos mais compreensíveis para espíritos formados na cultura filosófica e científica contemporânea” (p. V).

Hoje, quase 50 anos após essas palavras do Papa, quanto se tem avançado na ciência e na tecnologia! E quanto a humanidade tem continuado a debater-se, apesar do progresso técnico, com as perguntas que continuam a desafiar a mente e o coração: porque, ainda, tanta violência, tanta maldade, tanta injustiça, tanto consumismo, tanta miséria? Que nos diz a Ciência, sobre tudo isso? E que nos diz a Fé? A crença em Deus ajuda, ou, como insiste o “ateísmo militante”, atrapalha?

Aqui, uma distinção, que costumo fazer e que pode ser útil, entre “Fé” e “Religião”. Sem entrar nos detalhes abordados pela Teologia Fundamental, “Fé” é obediência, pessoal, e “Religião” é instituição, coletiva. Explico-me, sintetizando. “Fé” é adesão pessoal a Deus e à sua Palavra, é obediência e confiança, é, segundo João, “a vitória que vence o mundo” (1Jo 5,4). E “Religião” é a expressão coletiva dessa Fé, expressão coletiva que se dá em dois níveis: o nível ritual, doutrinal, que distingue as várias “religiões”, e o nível ético, moral, que as une, segundo Tiago: “Religião pura e sem mancha diante do Deus e Pai é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas dificuldades e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1,27). Infelizmente, as religiões, todas, são zelosas dos seus ritos e doutrinas, aliás necessários, exatamente porque expressam coletivamente a Fé, mas falham na ética, que devia ser a sua preocupação fundamental, isto é, dizem que “amam a Deus, a quem não vêem, e não amam a/o irmã/o, a quem estão vendo” (cf 1Jo 4,20). Daí, desse mal-entendido, tantos crimes, tanta “guerra santa”, empreendida em nome “de Deus”. E daí também, do mesmo mal-entendido, tanta virulência do “ateísmo militante” contra Deus.

Mas retornemos ao livro que nos ocupa. O simples elenco dos títulos dos 18 capítulos nos dá uma idéia da amplidão e do valor da pesquisa. Ao primeiro capítulo, programático, “Deus no banco dos réus” (pp. 15-26), segue o segundo, com o título “Os limites da Ciência” (pp. 27-40), a qual, “sem prejuízo de seus significativos avanços, ainda está longe de explicar o mundo” (p. 27). No capítulo terceiro, “Uma revisão histórica” (pp. 41-49) , o autor se detém sobre o “caso Galileu”, condenado pela Igreja em 1633, e reabilitado só mais de três séculos depois, em 1992, por João Paulo II. O capítulo quarto, “Darwin, a Igreja e a seleção das espécies” (pp. 51-57), aborda “um dos temas mais candentes na disputa entre Ciência e Fé, ou entre a religião e a academia, a saber, o que diz respeito ao evolucionismo, nos termos em que o colocou Charles Darwin” (p. 51). O tema é aprofundado no capítulo seguinte, sintetizado na pergunta do título: “São Tomás e Charles Darwin: uma parceria?” (pp.59-72)

A relação entre o cérebro e o que chamamos “alma” é estudada no capítulo sexto: “Deus, a neurociência, o cérebro quântico” (pp. 73-84). É provocativa a constatação inicial do autor, de que “na madrugada do novo século, a neurociência intenta demonstrar empiricamente que o espírito religioso, e mesmo a própria fé, estão sediados no cérebro, precisamente como uma máquina...” (p.73). O título que o autor dá ao capítulo sétimo, em forma de questionamento, “Fora da Ciência não há salvação?” (pp. 85-92), inspira-se no famoso axioma do bispo de Cartago, Cipriano, que, em meados do século III, lutou pela unidade da Igreja. Contra o movimento desagregador das heresias e cismas, o santo bispo insistia: “Fora da Igreja não há salvação”. Vieira demonstra que o caminho a seguir não é uma disjuntiva, “ou a Ciência ou a Igreja”, mas uma conjuntiva: cada uma no seu campo, tanto a Ciência como a Fé (a Igreja), são necessárias. O que é preciso superar, isso sim, é a utopia da “verificação de todas as teses” (título do oitavo capítulo, pp. 93-109), bem como o “nível de desinformação” (título do capítulo nono, pp. 111-121), obviamente de parte a parte, para que o debate entre Ciência e Fé, Ciência e Religião, não se torne um diálogo de surdos.

No capítulo décimo, “Brasil – Estado republicano e laico” (pp. 123-131), o autor aborda o tema da separação entre Igreja e Estado, tema cuja atualidade se demonstra “pelo espaço que ocupa na mídia. Em todas as mídias, em todo o mundo” (p. 123). O tema retorna no capítulo onze “Brasil – Símbolos religiosos no espaço público” (pp. 133-138), símbolos cuja remoção é postulada pelo “ateísmo intolerante”, com base no “desgastado fundamento da separação Igreja/Estado” (p. 133). Outro tema, na crista da onda, é abordado no capítulo 12: “A cultura da morte contra a cultura da vida – Aborto, Eutanásia, Células-tronco embrionárias” (pp. 139-150). O autor começa observando que “sob o surrado argumento da laicidade, alguns intentam silenciar a Igreja sobre esses temas” (p. 139), cerceando a própria liberdade de expressão, um dos fundamentos da democracia. O capítulo treze, com o título “As alternativas” (pp. 151-161), responde aos que defendem as pesquisas em células-tronco embrionárias, aduzindo o argumento da “solidariedade humana em relação aos enfermos que depositaram nessas pesquisas todas as suas esperanças” (p.151). A resposta, “escorada em fatos”, escreve Vieira, “é realista e não menos alvissareira: há, sim, alternativas. No plural, porque são múltiplas” (p. 151). E explica: Ao contrário do insucesso da bilionária pesquisa com células-tronco embrionárias, “grupos cada vez maiores de cientistas avançam nas pesquisas com células-tronco maduras...” (p. 151)

“A herança cristã” é o título do capítulo quatorze (pp. 163-175), no qual o autor retoma um tema já desenvolvido em sua obra anterior, “A Fé de Pedro e a Ciência de Tomé”. E cita T. E. Woods: “A civilização ocidental é uma herança da Igreja Católica, verdadeira responsável por valores e instituições que fazem parte da nossa história” (p. 163). Seria desonesto, portanto, como Vieira conclui na p. 175, “argüir a ‘tese’ do Estado laico como argumento de negação da história, confundindo os conceitos de laicidade e de ateísmo, para o fim, inconfessável, de promover uma ruptura”, uma negação da evidência dos fatos, ou seja, da verdade. Explicitando essa “herança cristã”, o autor dedica o capítulo quinze à relação entre “Igreja e Universidade” (pp. 177-183), justificando, de início, que “vale um capítulo para sublinhar, no mundo do saber, o papel da Universidade e sua origem. Ora, a universidade emergiu inspirada na própria visão teísta do cristianismo, que forneceu as bases do espírito científico” (p. 177). Por isso mesmo, comenta e deplora o sintomático incidente ocorrido com Bento XVI em janeiro de 2008, quando 67 professores e uma centena de alunos da Universidade La Sapienza, de Roma, exigiram o cancelamento do convite para que o Papa falasse na abertura do ano letivo. E o autor conclui: Eles quiseram “nada menos que calar a Igreja e revogar a História. Ou vice-versa. Revogar a História para calar a Igreja” (p. 183).

No capítulo dezesseis, Vieira aborda “o ateísmo militante e a origem das religiões” (pp. 185-194), comentando a posição dos que, como C. Hitchens, afirmam que elas vêm “da infância assustada e chorosa da nossa espécie”... (p. 185) Após uma bem elaborada síntese do complexo tema, o autor expõe “o alvorecer do cristianismo”, título do capítulo dezessete (pp. 195-202). Surpreendentemente, não aborda os inícios do Novo Testamento, nem focaliza a pessoa divino-humana de Jesus, mas prefere falar dos intelectuais que o reconheceram como Messias e Senhor ao longo da história. Entre eles, destaca a figura mística, quase contemporânea, de Simone Weil (1909-1943), judia e atéia até a idade adulta, como Edith Stein (1891-1942). A conversão de Simone “não foi uma mudança de religião, mas a passagem da pergunta à resposta, do anseio à revelação” (p. 197). “Segundo os críticos, a sua ‘Carta a um religioso’ pode, como símbolo, ser colocada à altura da ‘Carta ao Pai ’, de Kafka. Seus biógrafos dizem que essa obra pertence ‘à série de documentos fundamentais de nossa civilização, como a Regra de São Bento, os Exercícios de Santo Inácio de Loyola, ou o Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry’” (pp. 199-200). Depois de citar um dos famosos “Pensamentos” de Pascal, o autor termina o capítulo contrapondo os muitos que são da mesma fé que o ilustre filósofo e matemático (ver a lista na p. 201), aos que “optam pela simplificação de Hitchens, Dawkins, Sagan, Crick, Atkins, Monod, Brown, para ficar com alguns dos mais badalados missionários do ateísmo. Não descobrindo Deus onde se encontra Deus, escolheram para Ele um lugar no banco dos réus” (pp. 201-202).

O último capítulo, o dezoito, se apresenta como síntese de todo o livro: “Uma resposta da Ciência ao Ateísmo militante” (pp. 203-219). Cito o parágrafo inicial: “Excluída a cruzada do Ateísmo militante, há em curso, por parte da Igreja e da Academia, um esforço de conciliação entre a Fé e a Razão, que, na bela alegoria com que João Paulo II inicia a encíclica Fides et Ratio, ‘constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da Verdade’” (p. 203). Entre os “novos caminhos que a filosofia e a ciência nos propõem”, Vieira sintetiza o do Metarrealismo, de Jean Guitton, e o da Hiperfísica, de Teilhard de Chardin. Quanto ao primeiro, situa-o “para além da lógica clássica, que por seu turno vai dando lugar a um modo de pensamento metalógico”, o qual “demonstra a existência de limites físicos ao conhecimento” (p. 207). Quanto à Hiperfísica de Chardin, “não é uma metafísica, mas a admirável síntese de uma visão do mundo que fica além dos dados objetivos da Ciência” (p. 211). Para Chardin, “a evolução não é apenas um princípio, doutrina ou teoria, mas um padrão necessário do pensamento humano: é condição da própria existência do universo... Ela se dá a partir da cosmogênese, em direção à geogênese, à biogênese, à antropogênese, à noogênese, para enfim culminar na Cristogênese, quando enfim todas as coisas serão instauradas em Cristo, segundo a cosmovisão de Paulo na carta aos efésios (Ef 1,10; cf pp. 215-216).

No final do livro, antes da citação de Thomas Merton, o autor reafirma seu objetivo, expresso no subtítulo da obra, de apresentar “uma resposta da Ciência ao Ateísmo militante” (p. 219). Qualifica-a, modestamente, “ao menos como um esboço, sem qualquer pretensão acadêmica, muito menos, dogmática” (p. 219). O tom dialogal da obra confirma que ela não tem, é verdade, “pretensão dogmática”. O fundamentado de suas afirmações, porém, todas comprovadas por abundantes e atualizadas notas bibliográficas de rodapé, confere-lhe, se não “pretensão”, em todo caso, verdadeira dimensão acadêmica. Formulo votos para que sejam muitos os leitores, especialmente da juventude universitária, que, tendo estudado esta obra, “façam, livre e conscientemente, o seu julgamento, e proclamem o seu veredicto” (cf p. 219).

· O recensor, Mestre em Ciências Bíblicas, é Padre da arquidiocese de Florianópolis,SC e Professor no ITESC. Email: ney.brasil@itesc.org.br

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